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História e a ancestralidade da rapadura no Nordeste

Símbolo da região Nordeste do Brasil, a rapadura tem uma história que atravessa gerações da história do país

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O processo de se fazer rapadura ainda permanece tradicional, mesmo com algumas modernizações.

Foto: Amanda Andrade

         omum na casa do nordestino, a rapadura percorreu uma longa trajetória até se tornar símbolo de uma região do Brasil. Mesmo não sendo nativa de terras tupiniquins, a “raspa dura” — de onde vem o nome do doce — da cana-de açúcar serviu para alimentar escravizados, enfeitar as mesas dos grandes senhores de engenho na era do Brasil açucareiro e matar a fome do sertanejo em épocas difíceis. A história da rapadura acompanha a história brasileira e do Nordeste do país, desde a colonização até os dias atuais.

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Mas o que torna um alimento típico de uma região? É apenas sua origem? Para o professor Luis Davi Alves, especialista em ciências de alimentos, essa condição simbólica tem a ver com características geográficas, que propiciam o cultivo, caça ou pesca de algumas espécies, e a apropriação das matérias-primas pela população local. Segundo ele, é uma questão de pertencimento. “Os habitantes daquela região trazem aquele ingrediente para eles trabalharem em cima dele e levá-los até a sua mesa. É essa junção [geográfica e cultural] que dá origem ao sentimento de identificação com aquele alimento”, explicou o professor. De acordo com ele, a questão tradicional da rapadura no Nordeste é uma consequência da produção canavieira que fez parte da história nordestina.

No entanto, diante da onda de tráfico da espécie por outros países, a queda no preço do produto e, é claro, o processo de extinção da espécie originária diante do tamanho da exploração, os portugueses encerraram esse clico em solo brasileiro, preparando-se para explorar outro tipo de matéria-prima: o açúcar. A Coroa Portuguesa dividiu o território conquistado em pedaços delimitados, chamando-os de capitanias hereditárias, e os entregou a homens que tivessem intenção de produzir algo naqueles espaços. Os donos das terras, então, iniciaram o cultivo de cana-de-açúcar na colônia tropical, dando origem ao sistema de colonização agrária, método de ocupação de terras do qual Portugal foi pioneiro.

Assim, sendo uma espécie originária da Ásia, a produção de cana-de-açúcar foi introduzida em solo brasileiro por Afonso Martim de Souza, no ano de 1532, na cidade de São Vicente, em São Paulo. Em seguida, as plantações se estenderam para Pernambuco, Bahia e depois para outras capitanias. 

 

Para manter a economia que sustentou a elite portuguesa no continente europeu e americano, foi preciso investir em mão-de-obra. Acostumados a usar o trabalho escravo, os novos donos de terras começaram movimentar uma nova empreitada econômica que viria a ser a mais lucrativa no período colonial: o mercado de tráfico humano. Utilizando pessoas traficadas e escravizadas, os capitães da terra instalaram em suas grandes fazendas, localizadas especialmente no território mais a Nordeste do Brasil, o cultivo da cana-de-açúcar. Deu-se início, então, ao Ciclo do Açúcar no Brasil, base da economia colonial entre os séculos XVI e XVIII.

 

Das grandes produções, movimentadas pelo trabalho negro escravizado, sobravam os restos, ou seja, as raspasgens da cana-de-açúcar, que ficavam presas nos tachos utilizados na fabricação do açúcar para o comércio. Essa raspagem, então, era aquecida e depois colocada em tijolos, para que endurecesse e adquirisse seu tradicional formato retangular da rapadura que conhecemos hoje. Esse modo de se utilizar os restos da cana, no entanto, não surgiu no Brasil; é oriunda das Ilhas Canárias, por volta do século XVI, e, quando chegou por aqui, não tinha fins comerciais. Portanto, por não ser tratado como um produto rentável e ser um alimento rico em carboidratos, os restos da cana eram utilizados apenas para dar a sustança necessária à população escravizada, de modo que continuassem seu árduo ritmo de trabalho.

No entanto, a rapadura é, de fato, uma iguaria, e o que antes era apenas um meio de manter os escravizados de pé depois passou, também, a fazer parte da mesa dos senhores donos de engenhos. O que matava a fome do escravo era servido como quitute nas festas das grandes fazendas. 

 

Quando o ciclo econômico mudou, e as atenções se voltaram para as riquezas das minas gerais, a rapadura ainda continuou por aqui, mas também se espalhou pelo Brasil. Nos sertões abandonados, a iguaria penetrou de vez na alimentação, passando a ser um prato valorizado, seja como fonte de nutrição ou energia, dando força ao sertanejo para suportar o trabalho no clima árido. Nordeste afora, o “docinho” desbravou o interior do antes desconhecido Brasil junto com homens que passavam dias na mata e se utilizavam da energia e nutrientes da rapadura para continuarem a percorrer os caminhos desafiadores. 

 

Não demorou para que a rapadura passasse a fazer parte da alimentação básica daqueles que habitavam os sertões. Com o passar das gerações, ela se consolidou na casa dos nordestinos e também no cotidiano. Por alguns, a rapadura foi utilizada até mesmo para substituir o leite materno ou de forma medicinal, revelando o poder nutricional e simbólico do uso da rapadura pelos sertanejos. Mesmo se caracterizando, inicialmente, como um subproduto, o doce passou a integrar um lugar entre os alimentos mais típicos do Nordeste brasileiro. 

 

No entanto, no cenário atual, o professor Luís Davi destaca uma preocupação com a usurpação da rapadura por outros doce mais difundidos midiaticamente. Com o desgaste da produção e, consequentemente, da utilização da rapadura durante a pandemia da Covid-19, o consumo do doce tradicional também decaiu. “O destino é ficar no esquecimento. As populações mais jovens recebem mais anúncios de estrangeirismos e eles acabam fazendo essa troca da rapadura tradicional por um chocolate de uma grande marca. Essa troca pode fazer com que a rapadura acabe  no esquecimento, o que é perigoso no campo cultural”, destaca ele. 

 

Mas ainda há esperança! Devido a sua ancestralidade, é improvável que a rapadura seja esquecida depressa. O professor destaca que este doce tem um bom potencial para se reinventar e continuar presente na tradição nordestina. “Se a gente observar lá o período da venda do açúcar, todo o açúcar produzido para vender, para exportar e o que sobrava era pra gente. [Então] existe um elo com a rapadura, e, além desse ponto mais cultural nordestino, ele também funciona como um elo, um aspecto de resistência, uma identificação de resistência do povo”, salienta.

Conversamos mais a fundo com o professor especialista em ciências de alimentos, Luis Davi Alves, a respeito da tradição da rapadura no Nordeste, seu valor histórico  e as formas com as quais essa iguaria pode ser utilizada pela culinária de um povo, de modo a permanecer interligada à cultura:

00:00 / 19:00

Com informações de: 

FIGUEIREDO FILHO, José de. A rapadura na alimentação sertaneja.. Engenhos de rapadura do Cariri. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, p. 55-57, 1958.

 

Ciclo da Cana de Açúcar. Educa Mais Brasil, 2020. Disponível em: <https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/ciclo-da-cana-de-acucar>.

Interação com um Engenho

A seguir, convidamos você, leitor, a imergir em um Engenho de Cana Açúcar típico do Brasil Colonial. Nessa imagem, pintada por Debret em 1822, temos a realização das primeiras etapas para a produção da rapadura, que, mesmo com a modernização, permanece com poucos aspectos alterados. Como veremos na continuidade desta reportagem, a produção manual ainda é o principal ponto da produção da rapadura, apesar da inovação do maquinário. Agora, para que você conheça os principais pontos de destaque na imagem, clique nos números que aparecem na sua tela e descubra mais sobre a pequena construção presente em todos os engenhos de açúcar que davam vida à rapadura.

Engenho Manual que Faz Caldo de Cana, 1822

Jean-Baptiste Debret

Aquarela sobre papel, c.i.e.

17,60 cm x 24,50 cm

Museus Castro Maya - IPHAN/MinC (Rio de Janeiro, RJ)

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